terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Caio F. renascendo

Esse texto pra mim é o melhor de todos dele








Natureza Viva


Como você sabe, dirás feito um cego tateando, e dizer assim, supondo um conhecimento, faria quem sabe o coração do outro adoçar um pouco até prosseguires, mas sem planejar, embora planejes há tanto tempo, farás coisas como acender o abajur do canto depois apagar a luz mais forte, criando um clima assim mais íntimo, mais acolhedor, que não haja tensão alguma no ar, mesmo que previamente saibas do inevitável das palmas molhadas de tuas mãos, do excesso de cigarros e qualquer coisa como um leve tremor que, esperas, não transparecerá em tua voz. Mas dirás assim, por exemplo, como você sabe, sim como você sabe, a gente, as pessoas, infelizmente têm, temos, essa coisa, emoções, mas te deténs, infelizmente? o outro talvez perguntaria por que infelizmente? então dirás rápido, para não desviar-te demasiado do que estabeleceste, qualquer coisa como seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente, insistirás, infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções. Meditarias: as pessoas falam coisas, e por trás do que falam há o que sentem, e por trás do que sentem há o que são e nem sempre se mostra. Há os níveis-não-formulados, camadas imperceptíveis, fantasias que nem sempre controlamos, expectativas que quase nunca se cumprem, e sobretudo emoções. Que nem se mostra. Por tudo isso, infelizmente, repetirás, insistirás, completamente desesperado, e teu único apoio seria a mão estendida que, passo a passo, raciocinas com penosa lucidez, através de cada palavra estarás quem sabe afastando para sempre. Mas já não sou capaz de me calar, talvez dirás então, descontrolado, e um pouco mais dramático, porque meu silêncio já não é uma omissão, mas uma mentira. O outro te olhará com seus olhos vazios, não entendendo que teu ritmo acompanharia o desenrolar de uma paisagem interna, absolutamente não-verbalizável, desenhada traço a traço em cada minuto dos vários dias e tantas noites de todos aqueles meses anteriores, recuando até a data, maldita ou bendita, ainda não ousaste definir, em que pela primeira vez o círculo magnético da existência de um, por acaso banal ou pura magia, interceptou o círculo do outro.No silêncio que se faria, pensas, precisarás fazer alguma coisa, como colocar um disco ou ensaiar um gesto, mas talvez não faças nada, porque ele continuará te olhando com seus olhos vazios, no fundo dos quais procuras, mergulhador submarino, o indício mínimo de um tesouro escondido para que possas voltar à tona com um sorriso nos lábios e as mãos repletas de pedras preciosas. Mas nesse silêncio que certamente se fará, talvez acendas mais um cigarro, e com a seca boca cerrada, sem nenhum sorriso, evitarias o mergulho para não correres o risco de encontrar uma fera adormecida. Teu coração baterá fortemente, sem que ninguém escute, e por um momento talvez imaginas que poderias soltar os membros e simplesmente tocá-lo, como se assim conseguisses produzir uma espécie qualquer de encantamento que de repente iluminaria esta sala com aquela luz que tentas, em vão, descobrir também nele, enquanto dentro de ti ela se faz quase tangível de tão clara.Nítida luz que ele não vê, esse outro sentado a teu lado na sala levemente escurecida, onde os sons externos mal penetram, como se estivessem os dois presos dentro de uma bolha de ar, de tempo, de espaço, e novamente encherás o cálice com um pouco mais de vinho para que o líquido descendo por tua garganta trêmula vá de encontro a essa claridade que tentas, precário, transformar em palavras luminosas para ofender a ele. Que nada, diz, e nada dirás, e sem saber por quê pensas um extenso corredor escuro onde tateias, feito cego, as mãos estendidas para o vazio, pressentindo o nada, que tu mesmo prepararias agora, suicida meticuloso, através de silêncios mal tecidos e palavras inábeis, pobre coisa sedenta, te feres, exigindo o poço alheio para matar tua sede indivisível.Anjos e demônios esvoaçariam coloridos pela sala, mas o caçador de borboletas permanece parado, olhando para a frente, um cigarro aceso na mão direita, um cálice cheio de vinho na mão esquerda. A presença do outro latejaria a teu lado, quase sangrando, como se o tivesses apunhalado com tua emoção não dita. Tuas mãos apoiadas em bengalas mentirosas não conseguiriam desvencilhar o gesto para romper essa espessa e invisível camada que te separa dele. Por um momento desejarás então acender a luz, dar uma gargalhada ridícula, acabar de vez com tudo isso, fácil fingir que tudo estaria bem, que nunca houve emoções, que não desejas tocá-lo nem conhecê-lo, que o aceitas assim latejando amigo velo remoto, completamente independente de tua vontade, te todos esses teus informulados sentimentos. No momento seguinte, tão imediato que nascerá, gêmeo tardio, quase ao mesmo tempo que o anterior, desejerás depositar o cálice, apagar o cigarro e estender duas mãos limpas em direção a esse rosto que sequer te olha, absorvido na contemplação de sua própria paisagem interna.Mas indiferente à distância dele, quase violento, de repente queres violar com tua boca ardida de álcool e fumo essa outra boca a teu lado. Desejarás desvendar palmo a palmo esse corpo que tá tento tempo supões, até que as palma famintas de tuas mãos tenham percorrido todos os caminhos, até que tua língua tenha rompido todas as barreiras do medo e do nojo, tua boca voraz tenha bebido todos os líquidos, tuas narinas sugado todos os cheiros e, alquímico, os tenha transmutado num só, o teu e o dele, juntos - luz apagada, peças brancas de roupa cintilando, jogadas ao chão. Desejá-lo assim, a esse outro tão íntimo que às vezes julgas desnecessário dizer alguma coisa, porque enganado supões que tu e ele, vezenquando, sejam um só, te encherá o corpo de uma força nova, como se uma poderosa energia brotasse de algum centro longínquo, há muito adormecido, quem sabe dessa luz oculta, é então que sentes claramente que ele não é tu e que tu não serás ele, essa coisa, o outro, que mágico ou demoníaco, deliberado ou casual, te inflama assim, alucinando tua alma. Queres pedir a ele que, simplesmente sendo, te mantenha nesse atormentado estado brilhante para que possas iluminá-lo também com teu toque, com tua língua terna, com a vara de condão de teu desejo. Mas ele nada sabe, nem saberá se permaneceres assim, temeroso de que uma palavra ou gesto desastrados seriam capazes de rasgar em pedaços essa trama onde te enleias cada vez mais sem remédio, emaranhado em ti, em tua viva emoção, emaranhado no desconhecido de dentro dele, o outro - que no lado oposto do sofá cruza as mãos sobre os joelhos, quase inocente, esperando atento, educado, que de alguma forma termines o que começaste. Muito mais que com amor ou qualquer outra forma tortuosa de paixão, será surpreso que o olharás agora, porque ele nada sabe de tu próprio poder sobre ti, e neste exato momento poderias escolher entre torná-lo ciente de que dependes dele para que te ilumines ou escureças assim, intensamente, ou quem sabe orgulhoso negar-lhe o conhecimento desse estranho poder, para que não te estraçalhe impiedoso entre as unhas agora calmamente postas em sossego, cruzadas nas pontas dos dedos sobre os joelhos. Ah: fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro o cheiro preciso dele.Que não suspeitará de tua perdição, mergulhado como agora, a teu lado, na contemplação dessa paisagem interna onde não sabes sequer que lugar ocupas, e nem mesmo estás. Na frente do espelho, nessas manhãs maldormidas, acompanharás com a ponta dos dedos o nascimento de novos fios brancos nas tuas têmporas, o percurso áspero e cada vez mais fundo dos negros vales lavrados sob teus olhos profundamente desencantados. Sabes de tudo sobre esse possível amargo futuro. Sabes também que já não poderias voltar atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas palavras, sejam quais forem, não serão jamais sábias o suficiente para determinar que essa porta a ser aberta agora, logo após teres dito tudo, te conduza ao céu ou ao inferno. Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa.Só não saberás nunca que neste exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva. Como um trapezista que só repara na ausência da rede após o salto lançado, acendes o abajur do canto da sala depois de apagar a luz mais forte. E começas a falar.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Bukowski

Confissão

Charles Bukowski


esperando pela morte
como um gato
que vai pular
na cama
sinto muita pena de
minha mulher
ela vai ver este
corpo
rijo e
branco
vai sacudi-lo talvez
sacudi-lo de novo:
"Hank!"
e Hank não vai responder
não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa
nenhuma.
no entanto
eu quero que ela
saiba
que dormir todas as noites
a seu lado
e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas
e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora ser ditas:
eu te
amo.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Julio Cortázar

Casa tomada

Julio Cortázar


Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.

Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada idéia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.

Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.

Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, lima sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.

Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a idéia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.

Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:

— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.

Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.

— Tem certeza?

Assenti.

— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.

Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.

Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Freqüentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.

— Não está aqui.

E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa.

Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.

Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava:

— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?

Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.

(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e freqüentes insônias.

Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)

É quase repetir a mesma coisa menos as conseqüências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.

Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.

— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.

— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.

— Não, nada.

Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.

Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O Senhor das Moscas

Ressucitando o tal Blog!

Uma resenha que eu fiz sobre o Livro e o Filme " O senhor das moscas"

O Senhor das Moscas




O senhor das Moscas é o título usado por William Golding para o seu mais célebre livro, que lhe rendeu um prêmio Nobel. Baseado na obra de Golding o diretor Harry Hook fez o filme que leva o mesmo nome do livro. A história narrada por Golding e adaptada ao cinema por Hook, trata de um grupo de meninos que após sofrer um acidente de avião se vêem perdidos em uma ilha deserta no meio do Pacífico. Sem a presença de adultos o grupo tenta não abandonar a forma civilizada como vivia, buscando se adaptar à selva, elegendo Ralph como líder. Que tenta estabelecer regras de conduta com o intuito de tornar mais fácil a vivência enquanto esperavam o resgate. Mas na medida em que o tempo vai passando Ralph começa a perder o controle do grupo, pois Jack, outro líder entre os demais, que se preocupa mais com a sobrevivência, causa uma divisão no grupo, cria um novo acampamento, o acampamento dos “caçadores”.
As diferenças entre Ralph e Jack começam a ficar mais claras: Jack mais instintivo e Ralph mais racional. Os dois começam a entrar em conflito, o grupo de Jack é mais numeroso, a maioria dos garotos prefere ir à caça de javalis e garantir sua sobrevivência do que pensar em formas de sair da ilha. Ralph conta com um amigo: o gordinho chamado por todos de Porquinho, que apesar de ser apenas julgado por sua aparecia era muito inteligente e torna-se o conselheiro de Ralph.
A história começa a ficar tensa quando o grupo dos “caçadores” ataca o outro acampamento para roubar os óculos do Porquinho a fim de fazer fogo para assar o javali capturado. A trama começa a caracterizar-se para um final trágico após um dos garotos ter visto um vulto na mata, eles passam a acreditar que não estão sozinhos na ilha, pois essa era habitada por um monstro. O grupo de Jack acredita que o monstro mora em uma caverna, tomados pelo medo eles lhe oferecem a cabeça de um javali por eles caçado, como uma espécie de oferenda. Simon um dos poucos amigos de Ralph entra na caverna atrás do monstro, mas descobre que na verdade o monstro era um homem que havia se perdido na mata. Nesse momento a maioria do grupo está dominada pela idéia de sobrevivência, e acaba tomando atitudes irracionais, a esperança de resgate é mínima e o instinto de sobrevivência prevalece. Por conseqüência dessas condutas os garotos acabam cometendo dois assassinatos, de Simon e do Porquinho. Ralph fica totalmente sozinho e Jack e seus seguidores o vêem como inimigo. O final da trama consiste em todo o grupo munido de lanças e com os corpos pintados perseguindo Ralph, que é livrado de um final igual o de seus amigos por um militar que fazia a busca por eles na região.

A história de “O Senhor das Moscas” é inquietante, escrita em 1954, após a 2ª Guerra Mundial, ela trata de temas que ficaram muito mais evidentes a partir da década de 40. A maldade humana e a capacidade do homem de agir apenas por instinto a favor de uma ideologia figuram como temas centrais do livro/filme, que explora com bastante simbologia o processo de descivilização do grupo de meninos. A tentativa inicial de Ralph e do Porquinho de organizar o acampamento com a intenção de obter resgate através de um sinal de fogo começa a decair no momento em que ele observa que a maioria dos garotos, comandados por Jack, preferia caçar e brincar descuidando assim da fogueira, que representava uma forma de salvamento para os garotos.
Podendo ser interpretada sob diversas perspectivas a história trás uma interpretação muito interessante em relação aos três garotos que se destacam na trama por terem seus papéis dentro do grupo bem definidos, sendo assim responsáveis pelo desenrolar da história (Porquinho, Ralph e Jack). Ela é feita partindo da idéia de que Ralph, o líder eleito pela maioria (democrático), seria a representação da ordem e responsabilidade, por outro lado Jack seria um líder nato, que usa essa característica a seu favor de uma maneira autoritária, apenas a sobrevivência importava para ele, passando por cima de toda a ordem primeiramente estabelecida por Ralph e garantindo assim a maioria dos garotos ao seu lado. O Porquinho seria a razão, baseando-se em sua inteligência. Tinha uma visão lógica dos acontecimentos pensando a longo prazo e continha virtudes que o diferenciava de todos os outros. Podemos assim dizer que em uma comparação com o aparelho psíquico Ralph seria o Ego, o Porquinho o Superego e Jack o Id, pois os personagens têm ações comuns com as características das três instancias funcionais da mente.
Relacionando o posicionamento social de cada um com a psique humana, Golding abre ainda mais o leque de interpretações possíveis sobre, O Senhor das Moscas. O conflito entre os instintos animalescos de Jack e a racionalidade do Porquinho passa a causar problemas para Ralph, que representa a consciência, pois tenta agir com clareza para obter seu maior objetivo: ser resgatado. É possível observar em algumas partes do filme que Jack consegue fazer sua vontade prevalecer sobre Ralph, isso aparece mais claro no momento em que Ralph e Porquinho vão até o acampamento dos caçadores para conversar, mas Ralph acaba participando da roda de dança, compartilhando de certo modo da selvageria do grupo de Jack. Nessa mesma noite acontece o primeiro assassinato na ilha, Simon é confundido com o monstro e é morto pelos garotos, nesse momento Ralph volta a pensar com clareza e escuta os conselhos do Porquinho que tenta fazer com que ele não se deixe levar pelas idéias de Jack. Ralph tenta novamente estabelecer ordem convocando uma reunião com os garotos, mas nesse momento fica clara a total ausência de civilidade, a concha que representava o poder da civilização é quebrada e “acidentalmente” uma pedra cai sobre o Porquinho, matando o garoto. A morte do Porquinho dá o rumo final da trama, pois Ralph fica enfraquecido sem o seu superego e suscetível aos desejos de Jack.
Golding mostra que a divisão feita por Freud para explicar a mente humana pode ser usada também para dividir a sociedade. O poder pode se caracterizar de diversas maneiras e agir diferentemente em cada pessoa. Os três personagens representavam uma forma de poder dentro do grupo, mas ele quer passa a idéia de que a natureza humana é selvagem. Mesmo que Ralph e o Porquinho representem formas de poder sobre a sociedade eles acabam sendo derrotados pela selvageria instalada na mente dos outros meninos, pois todos os símbolos de civilização que Ralph poderia usar já não existiam mais. Golding mostra que uma sociedade sem leis entra em um estado de caos e é regida pelos instintos, que representavam a idéia de sobrevivência. Poderíamos dizer que essa era a ideologia de Jack A cegueira ideológica de Jack pode ser relacionada à realidade vivida na segunda guerra, onde foi possível presenciar acontecimentos tão cruéis quanto os vistos na obra, o líder político cruel e calculista da realidade lembra em vários aspectos o pequeno garoto da obra de ficção, pois os dois lideraram uma sociedade fragilizada demonstrando o poder de forma exageradamente ditatorial perdendo o controle sobre a situação.
Outro elemento importante da historia que pode servir para explicar todo o processo vivido pelos meninos na ilha é a existência de um monstro. A idéia de caça é incorporada pelo grupo através de Jack. Podemos assim dizer que ele usa o monstro para poder trazer os outros garotos para o seu lado, em meio uma situação onde não existem adultos para manter regras e em uma selva que guarda muitos mistérios a existência de um ser que é desconhecido pela maioria gera medo e torna os outros influenciáveis. O único que buscou uma explicação para o desconhecido foi Jack, assim como os antigos humanos das eras mitológicas descritas por Sigmund Freud em seu livro Totem e Tabu, foi Jack que concluiu que existia um monstro na ilha e que eles deveriam temê-lo. No filme isto está bem exemplificado na hora que Jack tem a idéia de oferecer a cabeça do primeiro Javali caçado para o monstro, que segundo ele moraria na caverna. Esses elementos dão total representação para a historia do monstro, sendo assim, Jack pode manipular o restante do grupo.
A trama de O Senhor das Moscas se mostra atual mesmo depois de mais de meio século da sua publicação. Ela vai fundo em conceitos básicos para a formação humana, trata de um tema delicado que é a formação e desformação do caráter moral da humanidade em relação às condições oferecidas para que a pessoa se mantenha dentro de parâmetros aceitáveis pela sociedade. No caso do filme é possível acompanhar a mudança de comportamento dos garotos influenciada pelos elementos externos, como a necessidade de sobrevivência em uma ilha deserta, eles tornam-se totalmente guiados pela natureza instintiva que os leva a cometer atos socialmente inaceitáveis em uma civilização. O que torna a história forte e mostra de uma forma complexa que não é apenas os conflitos sociais que geram descontrole e morte, mas cada indivíduo trava uma guerra em seu interior contra os instintos de natureza humana, que podem ser controlados quando se tem um aparelho psíquico bem estruturado.


Ana Ferraz

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Anotações sobre um amor urbano

Caio Fernando Abreu, de novo!




Anotações sobre um amor urbano

Em memória de Paulo Yutaka



Te amo como as begônias tarântulas amam seus congêneres;
como as serpentes se amam enroscadas lentas algumas muito verdes outras escuras,
a cruz na testa lerdas prenhes, dessa agudez que me rode ia,
te amo ainda que isso te fulmine
ou que um soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade.
(Hilda Hilst: Lucas, Naim)


Desculpa, digo, mas se eu não tocar você agora vou perder toda a naturalidade, não conseguirei dizer mais nada, não tenho culpa, estou apenas sentindo sem controle, não me entenda mal, não me entenda bem, é só esta vontade quase simples de estender o braço para tocar você, faz tempo demais que estamos aqui parados conversando nesta janela, já dissemos tudo que pode ser dito entre duas pessoas que estão tentando se conhecer, tenho a sensação impressão ilusão de que nos compreendemos, agora só preciso estender o braço e, com a ponta dos meus dedos, tocar você, natural que seja assim: o toque, depois da compreensão que conseguimos, e agora.
Não diz nada, você não diz nada. Apenas olha para mim, sorri. Quanto tempo dura? Faz pouco despencou uma estrela e fizemos, ao mesmo tempo e em silêncio, um pedido, dois pedidos. Pedi para saber tocálo. Você não me conta seus desejos. Sorri com os olhos, com a mesma boca que mais tarde, um dia, depois daqui, poderá me dizer: não. Há uma espécie de heroísmo então quando estendo o braço, alongo as mãos, abro os dedos e brota. Toco. Perto da minha a boca se entreabre lenta, úmida, cigarro, chiclete, conhaque, vermelha, os dentes se chocam, leve ruído, as línguas se misturam. Naufrago em tua boca, esqueço, mastigo tua saliva, afundo. Escuridão e umidade, calor rijo do teu corpo contra a minha coxa, calor rijo do meu corpo contra a tua coxa. Amanhã não sei, não sabemos.
Pensei em você. Eram exatamente três da tarde quando pensei em você. Sei porque sacudi a cabeça como se você fosse uma tontura dentro dela e olhei o digital no meio da avenida.
Corre, corre. O número do telefone dissolvendo-se em tinta na palma da mão suada. Ah, no fim destes dias crispados de início de primavera, entre os engarrafamentos de trânsito, as pessoas enlouquecidas e a paranóia à solta pela cidade, no fim destes dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços, que me abençoa e passa a mão na minha cara marcada, no que resta de cabelos na minha cabeça confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo quente da curva do teu ombro. Mergulho no cheiro que não defino, você me embala dentro dos seus braços, você cobre com a boca meus ouvidos entupidos de buzinas, versos interrompidos, escapamentos abertos, tilintar de telefones, máquinas de escrever, ruídos eletrônicos, britadeiras de concreto, e você me beija e você me aperta e você me leva para Creta, Mikonos, Rodes, Patmos, Delos, e você me aquieta repetindo que está tudo bem, tudo, tudo bem. O telefone toca três vezes. Isto é uma gravação deixe seu nome e telefone depois do bip que eu ligo assim que puder, 0K?
O cheiro do teu corpo persiste no meu durante dias. Não tomo banho. Guardo, preservo, cheiro o cheiro do teu cheiro grudado no meu. E basta fechar os olhos para naufragar outra vez e cada vez mais fundo na tua boca. Abismos marinhos, sargaços. Minhas mãos escorrem pelo teu peito. Gramados batidos de sol, poços claros. Alguma coisa então pára, todas as coisas param. Os automóveis nas ruas, os relógios nas paredes, as pessoas nas casas, as estrelas que não conseguimos ver aqui do fundo da cidade escura. Olho no poço do teu olho escuro, meia-noite em ponto. Quero fazer um feitiço para que nada mais volte a andar. Quero ficar assim, no parado. Sei com medo que o que trouxe você aqui foi esse meu jeito de ir vivendo como quem pula poças de lama, sem cair nelas, mas sei que agora esse jeito se despedaça. Torre fulminada, o inabalável vacila quando começa a brotar de mim isso que não está completo sem o outro. Você assopra na minha testa. Sou só poeira, me espalho em grãos invisíveis pelos quatro cantos do quarto. Fico noite, fico dia. Fico farpa, sede, garra, prego. Fico tosco e você se assusta com minha boca faminta voraz desdentada de moleque mendigo pedindo esmola neste cruzamento onde viemos dar.
A cidade está louca, você sabe. A cidade está doente, você sabe. A cidade está podre, você sabe. Como posso gostar limpo de você no meio desse doente podre louco? Urbanóides cortam sempre meu caminho à procura de cigarros, fósforos, sexo, dinheiro, palavras e necessidades obscuras que não chego a decifrar em seus olhos semafóricos. Tenho pressa, não podemos perder tempo. Como chamar agora a essa meia dúzia de toques aterrorizados pela possibilidade da peste? (Amor, amor certamente não.) Como evitaremos que nosso encontro se decomponha, corrompa e apodreça junto com o louco, o doente, o podre? Não evitaremos. Pois a cidade está podre, você sabe. Mas a cidade está louca, você sabe. Sim, a cidade está doente, você sabe. E o vírus caminha em nossas veias, companheiro.
Fala, fala, fala. Estou muito cansado. Já não identifico nenhuma palavra no que diz. Apenas me deixo embalar pelo ritmo de sua voz, dentro dessa melodia monótona angustiada perpiexa repetitiva. Quase três da manhã. Não temos aonde ir, nunca tivemos aonde ir. Um nojo, vezenquando me dá um asco — nojo é culpa, nojo é moral — você se sente sórdido, baby? — eu tenho medo, não quero correr riscos — mas agora só existe um jeito e esse jeito é correr o risco — não é mais possível — vamos parar por aqui — quero acordar cedo, fazer cooper no parque, parar de beber, parar de fumar, parar de sentir — estou muito cansado
— não faz assim, não diz assim — é muito pouco — não vai dar certo — anormal, eu tenho medo — medo é culpa, medo é moral — não vê que é isso que eles querem que você sinta? medo, culpa, vergonha — eu aceito, eu me contento com pouco — eu não aceito nada nem me contento com pouco — eu quero muito, eu quero mais, eu quero tudo.
Eu quero o risco, não digo. Nem que seja a morte.
Cachorro sem dono, contaminação. Sagüi no ombro, sarna. Até quando esses remendos inventados resistirão à peste que se infiltra pelos rombos do nosso encontro? Como se lutássemos — só nós dois, sós os dois, sóis os dois — contra dois mil anos amontoados de mentiras e misérias, assassinatos e proibições. Dois mil anos de lama, meu amigo. Esse lixo atapetando as ruas que suportam nossos passos que nunca tiveram aonde ir.
Chega em mim sem medo, toca no meu ombro, olha nos meus olhos, como nas canções do rádio. Depois me diz: — “Vamos embora para um lugar limpo. Deixe tudo como está. Feche as portas, não pague as contas nem conte a ninguém. Nada mais importa. Agora você me tem, agora eu tenho você. Nada mais importa. O resto? Ah, o resto são os restos. E não importam”. Mas seus livros, seus discos, quero perguntar, seus versos de rima rica? Mas meus livros, meus discos, meus versos de rima pobre? Não importa, não importa. Largue tudo. Venha comigo para qualquer outro lugar. Triunfo, Tenerife, Paramaribo, Yokohama. Agora, já. Peço e peço e não digo nada mas peço e peço diga, diga já, diga agora, diga assim. Você não diz nada. Você não me vê por trás do meu olho que vê. Você não me escuta por trás da minha boca que pede sem dizer, e eu bem sei. Você planeja partir para um país distante, sem mim, de onde muitos anos depois receberei a carta de um desconhecido com nome impronunciável anunciando a sua morte. Foi em abril, dirá, abril ou maio. Ou setembro, outubro. Os mais cruéis dos meses. Tanto faz, já não importará depois de tanto tempo, numa cidade remota.
Pelas escadarias da avenida deserta, lata de coca- cola largada na porta da igreja, aqui parece que o tempo não passou, quero te mostrar um vitral, esta sacada, aquele balcão como os de Lorca, entremeado de rosas, quero dividir meu olhar, desaprendi de ver sozinho e agora que tudo perdeu a magia, se magia houve, e havia, e não consigo mais ver nenhum anjo em você, pastor, mago, cigano, herói intergaláctico, argonauta, replicante, e agora que vejo apenas um rapaz dentro do qual a morte caminha inexorável, só não sabemos quando o golpe final, mas virá, cabelos tão negros, rosto quase quadrado, quase largo, quase pálido, onde já começou a devastação, olhos perdidos, boca de naufrágio vermelho pesado sobre o escuro da barba malfeita, olho tudo isso que vejo e não tem outra magia além dessa, a de ser real, e vou dizendo lento, como quem tem medo de quebrar a rija perfeição das coisas, e vou dizendo leve, então, no teu ouvido duro, na tua alma fria, e vou dizendo louco, e vou dizendo longo sem pausa — gosto muito de você gosto muito de você gosto muito de você.
Tantas mortes, não existem mais dedos nas mãos e nos pés para contar os que se foram. Viver agora, tarefa dura. De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria; em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã. Mas o poço não tem fundo, persiste sempre por trás, as cobras no fundo enleadas nas lanças. Por favor, não me empurre de volta ao sem volta de mim, há muito tempo estava acostumado a apenas consumir pessoas como se consome cigarros, a gente fuma, esmaga a ponta no cinzeiro, depois vira na privada, puxa a descarga, pronto, acabou. Desculpe, mas foi só mais um engano? e quantos mais ainda restam na palma da minha mão? Ah, me socorre que hoje não quero fechar a porta com esta fome na boca, beber um copo de leite, molhar plantas, jogar fora jornais, tirar o pó de livros, arrumar discos, olhar paredes, ligar-desligar a tevê, ouvir Mozart para não gritar e procurar teu cheiro outra vez no mais escondido do meu corpo, acender velas, saliva tua de ontem guardada na minha boca, trocar lençóis, fazer a cama, procurar a mancha da esperma tua nos lençóis usados, agora está feito e foda-se, nada vale a pena, puxar as cobertas, cobrir a cabeça, tudo vale a pena se a alma, você sabe, mas alma existe mesmo? e quem garante? e quem se importa? apagar a luz e mergulhar de olhos fechados no quente fundo da curva do teu ombro, tanto frio, naufragar outra vez em tua boca, reinventar no escuro teu corpo moço de homem apertado contra meu corpo de homem moço também, apalpar as virilhas, o pescoço, sem entender, sem conseguir chorar, abandonado, apavorado, mastigando maldições, dúbios indícios, sinistros augúrios, e amanhã não desisto: te procuro em outro corpo, juro que um dia eu encontro.
Não temos culpa, tentei. Tentamos.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Uma bobagem ai pra atualizar

Ela chegou assim, meio obrigada,
não queria estar ali, não buscava aquele lugar.
Por dias sonhou como seria sua vida nessas condições,
mas não era a hora certa!
Lá vem ela, sorrindo e falando a todos
"Eu estou aqui e não é por acaso"
Assim como eu acredito que ela estranhou a casualidadeque que a vida lhe ofereceu
De estar ali mesmo não querendo
Ela sabia que as coisas são assim, porque é preciso que sejam
Porque alguém tem que sofrer
Alguém tem que sorrir
E alguém tem que temer.
Não temer a vida
Mas o modo como ela pode brincar com os nossos planos
Nossa cabeça
E nosso coração.

Ana Ferraz

sábado, 28 de junho de 2008

Roda gigante

Girar, girar, sem querer parar

Do alto da roda gigante ele podia ver a cidade, lá em baixo iluminada e silenciosa. O parque já havia fechado, mas ele continuava lá sentado, sentia-se confortável e seguro, embora não gostasse do orvalho da noite que deixava suas roupas úmidas. Com a mão esquerda acariciava uma fotografia antiga, tinha os olhos atentos à foto, como se quisesse mergulhar no papel. Repetia em voz alta, já que ninguém podia ouvi-lo lá de cima, uma canção antiga que escutava na mocidade.Depois de repetir o refrão algumas vezes, calou-se. O silêncio era interrompido pelo barulho dos insetos e pequenos animais que rondavam o parque.
As luzes da cidade foram apagando-se, o orvalho da noite abria espaço para um tímido sol que aparecia por entre as nuvens. Lá de cima ele podia ver o alvorecer. Em pouco tempo a cidade já mostrava sinais de movimentação, alguns homens saíam de bicicleta em direção à obra de reforma da igreja, as crianças com suas mochilas entravam no ônibus e algumas mulheres conversavam no portão. O ritmo da pequena cidade era sempre o mesmo, calmo e pacato.
Era incrível a visão que o homem tinha lá do alto, a roda gigante proporcionava uma sensação de grandeza, ele sentia-se mais perto do céu e com o poder de ver quase tudo que acontecia na terra, sem que as pessoas ou os pássaros o notassem. Olhava a vida de uma forma que ela parecia distante dele o fazia ficar em silêncio, como espectador da realidade.
O parque só funcionava à noite, ele teria que ficar lá em cima até o brinquedo começar a girar. Ele sabia que a espera seria longa e gostava disso, gostava também de girar, sabia que assim como a roda girava sem sair do lugar a cada volta que ela dava uma sensação diferente proporcionava, por isso girava, girava sem querer parar. Puxou um maço de cigarros do bolso, acendeu um fósforo e deu uma comprida tragada. Ao soltar a fumaça bateu na caixinha o antigo samba da noite anterior, seus olhos encheram-se de lágrimas, o cigarro sendo seguro pelos lábios não permitia que o som saísse firme de sua boca, mas as lagrimas escorriam leves de seus olhos. Ele não parava de cantar, sua voz não estava embargada, agora já sem o cigarro nos lábios, ela soava mais forte a cada palavra. Repetiu a música muitas vezes, as lágrimas molhavam o casaco ainda úmido do sereno, seu rosto parecia mais limpo, sua alma mais leve.
Observando as pessoas que passavam lá na rua ele desconfiava que o tempo andava rápido, já havia passado do meio dia. Puxou novamente do bolso a fotografia, olhou-a por alguns minutos, dessa vez com menos atenção. Os seus olhos esboçavam alegria e sua boca um tímido sorriso. Ajeitou-se no banco apoiando suas costas no parapeito da cabine, ela balançava um pouco, mas ele não pareceu se importar com isso. Parecia estar alegre, com o corpo relaxado e os olhos fechados, balançava a foto no ar, sentia o vento que seus movimentos produziam, sussurrava baixinho que podia voar.
Ele estava sozinho, distante e feliz. Podia ser quem ele quisesse, preferiu ser o que ele era. Acendeu um cigarro e olhou para baixo, como se precisasse certificar-se da distância que ele se encontra do chão. Guardou a fotografia no bolso, tirou o casaco e amarrou-o na cabeça, o sol da tarde ardia forte. O calor foi o único desconforto, não sentia sede, fome ou sono, apenas o ardor do sol em seu rosto.
O sol começava a esconder-se no horizonte, o homem que olhava novamente atento a fotografia não podia perceber que o pôr do sol se aproximava. Com a mão direita segurava a foto, pela primeira vez a luz permitia que ela fosse vista com clareza. Três homens, lado a lado, todos muito jovens. Ele pegou seu maço de cigarros, acendeu um fósforo e levou até o cigarro que estava em sua boca. Quando soltou a fumaça, repousou o braço sobre a perna, as cinzas caíram em cima do sapato surrado que ele calçava. Deu mais uma tragada e jogou o cigarro fora. Com a mão esquerda rasgou a foto, ficou com dois pedaços de papel na mão, em um deles encontravam-se duas figuras, no outro apenas uma. Rasgou em cinco pedaços o papel que tinha apenas um homem e os arremessou para fora da roda gigante. Ficou acompanhando os pedacinhos de papel que flutuavam no ar até que caíssem no chão.
O tempo havia passado, a noite chegara e trouxe com ela muitas pessoas ao parque. A roda começou a girar, quando o monitor do brinquedo deparou-se com aquele homem na cabine levou um susto, deixou que a roda completasse mais uma volta, então parou e pediu para que ele se retirasse. Muito surpreso indagou-o como ele tinha parado lá em cima, mas o homem não respondeu. Saiu do brinquedo, pegou a mão do monitor, entregou-lhe a outra metade da fotografia e saiu andando pelo parque, até sumir em meio a multidão. O funcionário do parque não entendeu nada do que estava acontecendo. Segurou o pedaço da foto, nela havia dois homens bem vestidos com ternos e chapéus bem alinhados, a fotografia em preto e branco estava amarelada por causa do tempo. O garoto virou o papel, no verso bem ao canto tinha uma inscrição, atentamente ele decifrou o que estava escrito. “Amigo, devo a ti a minha vida. São Paulo 1968.”
O monitor ficou parado olhando atentamente a fotografia, nenhum dos homens parecia com aquele que havia saído da roda gigante. Sem saber como ele havia parado lá em cima o garoto esboçou um tímido sorriso, guardou a foto no bolso, apertou o botão e ligou a roda gigante. Ela começou a girar, girar, sem querer parar.

Ana Ferraz