sábado, 28 de junho de 2008

Roda gigante

Girar, girar, sem querer parar

Do alto da roda gigante ele podia ver a cidade, lá em baixo iluminada e silenciosa. O parque já havia fechado, mas ele continuava lá sentado, sentia-se confortável e seguro, embora não gostasse do orvalho da noite que deixava suas roupas úmidas. Com a mão esquerda acariciava uma fotografia antiga, tinha os olhos atentos à foto, como se quisesse mergulhar no papel. Repetia em voz alta, já que ninguém podia ouvi-lo lá de cima, uma canção antiga que escutava na mocidade.Depois de repetir o refrão algumas vezes, calou-se. O silêncio era interrompido pelo barulho dos insetos e pequenos animais que rondavam o parque.
As luzes da cidade foram apagando-se, o orvalho da noite abria espaço para um tímido sol que aparecia por entre as nuvens. Lá de cima ele podia ver o alvorecer. Em pouco tempo a cidade já mostrava sinais de movimentação, alguns homens saíam de bicicleta em direção à obra de reforma da igreja, as crianças com suas mochilas entravam no ônibus e algumas mulheres conversavam no portão. O ritmo da pequena cidade era sempre o mesmo, calmo e pacato.
Era incrível a visão que o homem tinha lá do alto, a roda gigante proporcionava uma sensação de grandeza, ele sentia-se mais perto do céu e com o poder de ver quase tudo que acontecia na terra, sem que as pessoas ou os pássaros o notassem. Olhava a vida de uma forma que ela parecia distante dele o fazia ficar em silêncio, como espectador da realidade.
O parque só funcionava à noite, ele teria que ficar lá em cima até o brinquedo começar a girar. Ele sabia que a espera seria longa e gostava disso, gostava também de girar, sabia que assim como a roda girava sem sair do lugar a cada volta que ela dava uma sensação diferente proporcionava, por isso girava, girava sem querer parar. Puxou um maço de cigarros do bolso, acendeu um fósforo e deu uma comprida tragada. Ao soltar a fumaça bateu na caixinha o antigo samba da noite anterior, seus olhos encheram-se de lágrimas, o cigarro sendo seguro pelos lábios não permitia que o som saísse firme de sua boca, mas as lagrimas escorriam leves de seus olhos. Ele não parava de cantar, sua voz não estava embargada, agora já sem o cigarro nos lábios, ela soava mais forte a cada palavra. Repetiu a música muitas vezes, as lágrimas molhavam o casaco ainda úmido do sereno, seu rosto parecia mais limpo, sua alma mais leve.
Observando as pessoas que passavam lá na rua ele desconfiava que o tempo andava rápido, já havia passado do meio dia. Puxou novamente do bolso a fotografia, olhou-a por alguns minutos, dessa vez com menos atenção. Os seus olhos esboçavam alegria e sua boca um tímido sorriso. Ajeitou-se no banco apoiando suas costas no parapeito da cabine, ela balançava um pouco, mas ele não pareceu se importar com isso. Parecia estar alegre, com o corpo relaxado e os olhos fechados, balançava a foto no ar, sentia o vento que seus movimentos produziam, sussurrava baixinho que podia voar.
Ele estava sozinho, distante e feliz. Podia ser quem ele quisesse, preferiu ser o que ele era. Acendeu um cigarro e olhou para baixo, como se precisasse certificar-se da distância que ele se encontra do chão. Guardou a fotografia no bolso, tirou o casaco e amarrou-o na cabeça, o sol da tarde ardia forte. O calor foi o único desconforto, não sentia sede, fome ou sono, apenas o ardor do sol em seu rosto.
O sol começava a esconder-se no horizonte, o homem que olhava novamente atento a fotografia não podia perceber que o pôr do sol se aproximava. Com a mão direita segurava a foto, pela primeira vez a luz permitia que ela fosse vista com clareza. Três homens, lado a lado, todos muito jovens. Ele pegou seu maço de cigarros, acendeu um fósforo e levou até o cigarro que estava em sua boca. Quando soltou a fumaça, repousou o braço sobre a perna, as cinzas caíram em cima do sapato surrado que ele calçava. Deu mais uma tragada e jogou o cigarro fora. Com a mão esquerda rasgou a foto, ficou com dois pedaços de papel na mão, em um deles encontravam-se duas figuras, no outro apenas uma. Rasgou em cinco pedaços o papel que tinha apenas um homem e os arremessou para fora da roda gigante. Ficou acompanhando os pedacinhos de papel que flutuavam no ar até que caíssem no chão.
O tempo havia passado, a noite chegara e trouxe com ela muitas pessoas ao parque. A roda começou a girar, quando o monitor do brinquedo deparou-se com aquele homem na cabine levou um susto, deixou que a roda completasse mais uma volta, então parou e pediu para que ele se retirasse. Muito surpreso indagou-o como ele tinha parado lá em cima, mas o homem não respondeu. Saiu do brinquedo, pegou a mão do monitor, entregou-lhe a outra metade da fotografia e saiu andando pelo parque, até sumir em meio a multidão. O funcionário do parque não entendeu nada do que estava acontecendo. Segurou o pedaço da foto, nela havia dois homens bem vestidos com ternos e chapéus bem alinhados, a fotografia em preto e branco estava amarelada por causa do tempo. O garoto virou o papel, no verso bem ao canto tinha uma inscrição, atentamente ele decifrou o que estava escrito. “Amigo, devo a ti a minha vida. São Paulo 1968.”
O monitor ficou parado olhando atentamente a fotografia, nenhum dos homens parecia com aquele que havia saído da roda gigante. Sem saber como ele havia parado lá em cima o garoto esboçou um tímido sorriso, guardou a foto no bolso, apertou o botão e ligou a roda gigante. Ela começou a girar, girar, sem querer parar.

Ana Ferraz

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Um texto diferente.


Aqueles olhos azuis


"Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!"


Tu me olhavas com olhos de fogo. Parecia que eu podia ver as chamas me consumindo dentro daqueles doces olhos azuis. Toda vez que falava nela eu sentia as faíscas tornando-se chama, sabia que era ela que tu querias queimar.
Todas as noites eu fechava a janela da sala, era uma maneira de abafar o som que vinha da rua. Nunca gostei dos sons da noite da cidade, os gemidos das almas que vagam sem rumo pelos becos e bares, discutindo, amando e chorando pelas calçadas imundas. Eu me sentia imunda suja com todos os sons e pedidos de socorro que vinham por aquela janela e eu mesma precisava de ajuda. Mas eu ficava lá olhando o fogo me consumir no interior dos teus olhos sem que eu pudesse sentir que também alguma coisa em mim parecia queimar.
Foram muitos anos vividos sem sentir que ela também me atingia e que meus olhos também queimavam quando tínhamos variados devaneios que sempre acabavam no mesmo assunto. O que de tão especial ela tem que nos fazia queimar por dentro, sem que pudéssemos admitir que ela mexia conosco. A cada dia que passava falávamos mais claramente sobre ela, o significado dela entre nós e o silêncio tomava uma proporção que já não podíamos controlar, apenas ficávamos ali sentados refletindo sem percebermos o tempo, que passava acelerado por nós.
Você sempre falava que era como magia, que não tinha como explica-la, não havia teoria que pudesse fazer com que entendêssemos a razão dela nos fazer queimar, sem dor, talvez fosse mesmo uma espécie de mágica ou sonhos grandes demais, talvez até epifanias impossíveis de se fazerem reais. Repetíamos sempre que o mais importante era fazermos dela o que nos fizesse sentir bem, queríamos sugá-la para dentro de nós.Consumi-la com nossas chamas. Precisávamos sentir o ardor, para nos sentirmos vivos.
Mas alguma coisa aconteceu, não conseguíamos sair do mesmo lugar, os sonhos só aumentavam. O tempo passou, hoje o carvão ainda tem brasa, mas está se transformando em cinzas. Deixamos o fogo apagar, a brasa nos lembra que ela ainda está queimando em nós só que já não conseguimos suga-la para o nosso interior, talvez tenhamos relaxado e desistido de alimentar o fogo. Entre magias e encontros, o que vemos hoje são apenas cinzas e desencontros, que são embalados pelos sons que vem da rua, agora bem mais carregados de dor.
Ela passou sem que percebêssemos o que estávamos fazendo com ela, que já não aparecia nos nossos papos, não ficava mais entre nós. As chamas em seus olhos não me queimam mais e eu sabia que ousamos pouco, choramos pouco e deixamo-la escapar.

Ana Ferraz

domingo, 15 de junho de 2008

mais um devaneio

Sensibilidade à flor da pele

Para Élvis Herrmann Bonini


Ele chegou meio calado, misterioso, não olhava para os lados, parecia que não queria estar ali. Sentou em uma das mesas intermediárias da classe, tirou o estojo da mochila e organizou todas as canetas em ordem crescente em cima da mesa, o cabelo escuro e um pouco comprido caia sobre os olhos, carregava um sorriso que surgia disfarçadamente no rosto, seus olhos diziam que ele era uma alma que ainda estava se descobrindo.
Com o tempo já era possível observar que ele era um tipo raro de rapaz, carregava uma luz própria, entre tantas faces e facetas ele via a essência de sentimentos, que normalmente as pessoas tentavam esconder. Seu olhar agora mais definido era meigo e forte, um contraste que mostrava que apesar de ainda um pouco perdido ele sabia onde queria chegar, só falta definir os caminhos.
Alguma coisa me chamava a atenção naquele rapaz que sentava nas mesas intermediarias, nunca tinha conversado com ele, mas sempre o observava falando com outras pessoas, ele tinha um papo curioso, interessado no que os outros diziam, parecia ter emoções que borbulhavam dentro do peito, mas que ainda meio sem jeito ele não conseguia lidar com elas. Ele não era uma daquelas almas que vagam perdidas num deserto de almas desertas, de onde às vezes é impossível sair, e eu não o conhecia, mas o observava, de longe era possível notar que ele tinha algo que o diferenciava da maioria, uma sensibilidade que não se podia explicar e que eu queria experimentar, mas não tinha coragem.
Muitos anos se passaram, a minha covardia não me permitiu que nos aproximássemos na juventude, hoje sei que perdi muito tempo por causa disso e se pudesse me arrepender eu faria diferente. Após um tempo sem vê-lo reconheci aquele rosto, agora mais velho por causa do tempo, os cabelos não caiam mais sobre os olhos, o sorriso não era mais tímido, era alegre e marcante. Na primeira vez que eu o vi andando pelos corredores do prédio passei por ele como se fosse apenas mais um vizinho, acenei com a cabeça e ele respondeu com um oi tímido, senti naquele momento que ele me reconheceu ou apenas era simpático. Sempre escutava uma música que vinha dos andares de cima, um som que me fazia relaxar, pensava naquele rapaz, um tipo diferente de rapaz, não sabia por que ele aparecera de novo em minha vida, eu achava estranho o encantamento que eu tinha pelo jeito de ser dele, mas nunca tinha pensado em reencontrá-lo, não depois de tantos anos.
Fiquei dias sem vê-lo, achei que ele pudesse estar apenas visitando algum vizinho meu. Mas os encontros começaram a ser mais freqüentes, até que um dia foi inevitável, ele me reconheceu e perguntou se eu não havia sido colega dele na escola. Respondi que sim, perguntei como ele lembrava de mim, já que nunca havíamos trocado muitas palavras além de comprimentos que aconteciam esporadicamente. Mas ele lembrava de mim, assim como eu lembrava dele, eu tinha certa curiosidade em relação a aquele rapaz, que hoje estava na minha frente, um homem e com as mesmas emoções dos tempos de garoto.
Eu já tinha mudado muito, não tinha mais medo de conversar. Descobrimos que éramos vizinhos, ele morava no apartamento de cima, rimos muito quando começamos a nos conhecer e a relembrar das histórias do colégio, apesar de não termos convivido sabíamos muitas historias em comum. Tornamo-nos grandes amigos, mas eu continuei a observá-lo, a cada dia que passava a nossa convivência aumentava e eu podia ver que aquela essência da juventude tinha se tornado realidade, ele ainda sabia onde queria ir e já havia encontrado os caminhos, minha curiosidade sobre ele também aumentava, eu queria descobrir o que ele tinha de tão especial.
Eu que nunca fui de muitos amigos, encontrei nele uma família, nossa convivência era muito intensa e especial, compartilhávamos dos mesmos gostos. Muitas vezes eu estava em casa, com um copo de vinho e muitos papéis para ler e problemas para resolver, mas largava tudo quando ouvia o som no apartamento de cima, ele sempre colocava discos que me faziam dançar, acho que muitas vezes isso acontecia sem querer, mas nos tínhamos uma ligação, parecia que ele sabia quando eu estava ficando triste ou com muitas coisas para fazer e pensar, a música me ajudava a relaxar, muitas vezes fiquei dançando no meio da sala da minha casa, nunca contava isso pra ninguém, mas ele parecia saber.
Dividíamos também algumas frustrações, o amor era assunto muito presente, mas muito distante. Costumávamos conversar muito sobre assuntos do coração, não sabíamos explicar como as pessoas conseguiam se apaixonar, só sabíamos que paixão e sofrimento andavam juntos, acho que sempre tivemos medo de amar, medo de sofrer, como já aconteceram algumas vezes. Também ficávamos horas falando sobre o mundo, sobre pessoas, um dia toquei no assunto das almas que viviam no deserto de almas e como algumas nunca sairiam de lá, ele riu, mas entendeu o que eu queria dizer. Falava que às vezes é difícil pensar nessas pessoas, em como essas almas acabavam assim, como elas não podiam sentir o que acontecia em volta delas. Foi através de assuntos que nos frustravam e nos agonizavam que eu pude ir descobrindo qual era o mistério que rondava aquela pessoa adorável, perceber que ele também tinha dias ruins, medos e insatisfações que o tornavam o que ele realmente era, uma pessoa, ser humano e como todos os seres humanos ele também tinha coisas mal resolvidas, mas o que mais me intrigava era a visão que ele tinha dessas coisas que o atormentavam. Sempre da mesma forma, seguia com um olhar meigo e forte que mostravam que ele não era uma pessoa comum.
Hoje, ainda tememos o amor, sentimos pelas pessoas que não conseguem enxergar além dos estereótipos, continuamos vizinhos, ainda não falei pra ele sobre a música que me alegra e acalma, muitas descobertas foram feitas, muitos gostos foram refinados, muitas visões sobre arte, política, sociedade, foram moldadas. Ele ainda é parte de mim, assim como eu parte dele. Ah sim, eu ainda não descobri o que nele é tão fascinante, mas tenho dado o nome dessas sensações que eu tenho em relação a ele de: sensibilidade à flor da pele. Tente conviver com uma pessoa assim, especial e intrigante, que poderás sentir o que eu quero dizer.



Ana Ferraz

domingo, 8 de junho de 2008

(...)Por isso cada um de nós tem que encontrar por si mesmo o "permitido" e o "proibido" relativamente à sua própria pessoa - o que é proibido a cada um de nós. Podemos deixar de fazer tudo o que for proibido e sermos, a despeito disso, um ressumado patife. E vise-versa. - Em suma, tudo não passa de uma questão de comodidade! Aquele que acha mais cômodo não ter que pensar por si mesmo e ser seu próprio juiz, acaba por submeter-se às proibições vigentes. Acha isso mais simples. Mas há outros que sentem em si mesmos a sua prórpia lei, e concideram proibidas as coisas que os homens de bem perpetram a todo instante e permitem outras sobre as quais recai uma geral interdição.
Cada qual tem que responder por si mesmo.(...)

Herman Hesse - Demian