terça-feira, 27 de maio de 2008

Elvis!

Estou postando um texto do meu amigo Élvis. Quem lê o que é publicado aqui e estiver afim de dar se pitaco, por favor comentar é permitido!

Naquela cerveja de bar...

Ela é um mistério. Deve ter a décima casa em Peixes também. Tem tantas coisas nela que estão fechadas para mim. Algo se esconde lá. Entre aquela neblina do cigarro e a espuma da cerveja que não permite ver o que está submerso. Com certeza o preto lhe caia bem. Mas o que realmente acontecia dentro daquela garrafa de cerveja? Que bolhas de gás histórico essa jovem mulher tinha passado? Que líquido dourado envelhecido era aquele?
Ela é alta, esguia. Seus cabelos pretos fortes revelam o brilho da juventude em seu esplendor. Seu corte era repicado com franjas intercaladas. A pele do rosto era límpida, como um pêssego. As vezes sorria de maneira amedrontadora que me assustava mas que lindos dentes mostrava. Era um corpo escultural, cheio de beleza e atração.
Era um grilo. Ás vezes caminhava com os joelhos dobrados, fazendo piadinhas e soltava gargalhadas altas. Ela tinha o dom do humor. E seus dentes brilhavam mais. Suas pálpebras diminuíam, enrugando os lados dos olhos, com sorrisos generosos, mas não; ela não estava chapada, era pura diversão mesmo.

But darling darling, stand by me
Stand by me
Stand by me

A menina perdida era revolucionária. Lia sobre a Revolução de 68 e socialismo. Era dotada de grande criticidade. Queria se envolver com política na universidade, derrubar o governo vigente. Era injustiça. Se revoltava quando escutava Elis Regina cantando sobre a anistia. O fogo havia se apagado, as pessoas há não lutam por ideais dizia ela.
Nos seus olhos fechados para o exterior, escondiam-se em camadas múltiplas, sentimentos que não vinham a tona. Eram latentes, mas estavam presas em um aquário como peixes dourados de estimação, esperando para serem lançados em uma lagoa qualquer.
Estava absorta em pensamentos. Olhar vago. A mente mais uma vez lacrada para o mundo exterior. Uma noite dessas ela estava com seus jeans justos, camiseta preta e branca com um terninho de veludo preto. Usava tênis pretos com as estrelas brancas, símbolo da vida que levava. Cinco pontas. Tão simples. Companheiros de tantas loucuras vividos por ela. Ela se sentou no banco de madeira preso ao chão e pensou. Pegou um cigarro Carlton vermelho e seu isqueiro. O céu estrelado e ela. Glamourosamente, ela fumava. Levava o cigarro à boca aberta entre o indicador e o dedo médio, depois alguns toques para as cinzas caírem. A fumaça invadia seus pulmões e os pensamentos eram tantos que saiam em forma de fumaça. Se esvaia lentamente sob o céu claro e estrelado. A lua refletia seu rosto e mostrava a pele límpida, suave com óculos estilo John Lennon e um par de lágrimas. O cigarro ajudou. As camadas múltiplas eram rasgadas, dilaceradas e tudo saía ora pelo cigarro ora pelos olhos. Olhava o olhar dele e queria comer o beijo dele.
No fundo a revolta se transformava em paixão, ela queria apenas o amor. Mecanismos de defesa eram revezados constantemente para proteger algo que ela tanto queria mas que tanto não queria. O futuro estava lá, esperando. A deriva para ser construído. Só faltava um olhar e uma entrega. A dela.

Elvis Boninni

sábado, 24 de maio de 2008

Poema

Saudade

Pablo Neruda

Saudade é a solidão acompanhada, é quando o amor ainda
não foi embora, mas o amado já...
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não viver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram pra trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudade,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.




segunda-feira, 19 de maio de 2008

Aaaah!

Uma carta de alguém para outro alguém. Muitas vezes me eprguntam se o que eu escrevo são coisas que eu sinto, que eu vivo ou que eu penso que posso viver. A única resposta que eu dou, porque é sempre a mesma, é que eu apenas conto histórias, claro que algumas coisas conhecidem com a minha vida, mas eu só conto histórias, que podem acontecer comigo, contigo, com qualquer pessoa.

Mais um devaneio meu ai!



Longe de mim

Longe de mim, acho que o amor passa longe de mim.
Chove, chove, chove muito lá fora, eu posso ver através do vidro os pingos caindo no asfalto cinza e molhado.Na sala a televisão sussurra baixinho frases que eu não compreendo e o cinzeiro cheio me dá mais vontade de aumentar as garrafas vazias sobre a mesa, abraçada ao travesseiro eu penso em coisas como: porque a gente arruma a cama para dormir se em segundos estará desarrumada ou porque usamos pijama se ninguém nos vê dormindo.Então lembro que eu não uso pijamas e há tempos nem a cama arrumo.Um clima de nostalgia que se formara desde aquele dia em que tudo acabou e a fumaça do cigarro traz no ar um sentimento de solidão que penetra fundo na minha alma, me faz sentir medo. Nem meus livros me animam mais, aquele disco dos Beatles não me faz cantar e muito menos as antigas fotografias melhoram o meu humor, eu sou uma alma só num mundo deserto de pessoas especiais.

Era Agosto, o frio da cidade me dava esperanças de que as coisas iam melhorar, eu amava o frio, era lindo passear no fim de tarde sentindo o vento frio cortar meu rosto enquanto o sol tímido se despedia no horizonte, eu sabia que nos encontraríamos mais tarde, a música rolaria solta, os Beatles embalariam nossos papos interessantíssimos sobre teorias e historias das quais os personagens não éramos nós. Os copos cheios se responsabilizariam pelas gargalhadas exageradas, a fumaça dos cigarros dariam um clima mais aconchegante e a luz baixa nos tornaria mais íntimos, como se precisasse. Éramos como velhos amigos, sentados conversando sobre coisas banais, nos permitíamos um contato físico e sentimental que só se tem entre pessoas com almas diferentes, puro, amoroso e protetor.Tudo era tão sublime e eu tinha a certeza que o amor estava ali presente nos gestos, nas palavras nos olhares que penetravam fundo na alma do outro sem que um sentimento desconfortável de constrangimento tirasse o brilho daquele momento, em que estávamos totalmente entregues um ao outro.
Mas naquele dia daquele mês de Agosto algumas coisas haviam mudado. Desde então nossos olhares não se cruzavam mais, os assuntos não fluíam e éramos como estranhos um para o outro, sem explicação lógica para essa mudança de sentimento, apenas a sensação de que as coisas estavam erradas, como se os planetas tivessem saído da órbita ou o sol mudado de lugar, não tinha explicação e não tínhamos idéia de como isso acontecera, mas aconteceu.
Aconteceu naquele mês de Agosto. Os encontros começaram a se tornar raros, nem olhávamos mais um para o outro, o disco não tocava mais, o sonho tinha acabado e junto com ele todo aquele sentimento sublime dava lugar a um sentimento cruel que doía, doía fundo numa alma vazia. Bebíamos mais, fumávamos mais, mas não se escutavam gargalhadas e o clima era frio e distante. Até o dia que passei por ele na rua e um pequeno gesto com a mão selou o fim de tudo.

Longe de mim, eu tinha certeza que o amor passava longe de mim.
Os dias eram intermináveis, já era Novembro e eu continuava só, no mesmo apartamento, com a mesma luz baixa, mas o triplo de garrafas sobre a mesa, os maços de cigarro vazios já faziam parte da decoração, meus livros estavam jogados pelo chão, eu tentava lê-los, mas não tinham mais graça, na vitrola os Beatles tinham sido trocados por umas sinfonias tristes de Wagner que me traziam pensamentos diferentes, eram mais ferozes, eu tinha vontade de invadir a Polônia, a Escócia, e Ucrânia, transforma-los em paises livres do sofrimento de sua história, mas na verdade a Polônia, a Escócia, a Ucrânia e principalmente a Rússia, eram eu mesma, fria, enorme e vazia.
Longe de mim, o amor está longe de mim.
Em Janeiro a situação era praticamente a mesma, eu continuava no mesmo lugar, a luz baixa era fraca e as garrafas já ocupavam metade da sala, meus dias eram tristes, eu começava a ter medo, trocara os discos pela televisão, mas os sussurros que saiam dela eram mais vazios do que a minha alma, preferia a companhia dos livros fechados por falta de leitura e os discos jogados pelo chão do que o vazio da televisão. Já havia esquecido a Polônia, a Escócia era apenas uma vaga lembrança, a mais marcante, pois eram de lá os uísques mais saborosos, inclusive um que eu havia ganhado de presente dele no meu aniversário.
Os meses de verão não eram os meus preferidos, o calor me cansava, preferia o frio de Agosto, que apesar de me trazer lembranças daquele sentimento feliz me trazia esperança de que o próximo Agosto seria diferente, mas a realidade me incomodava, saber que ainda era Janeiro me fazia pensar nas plantas sedentas e nos animais calorentos que assim como eu queriam água fresca para dar um ânimo para recomeçar, mas era Janeiro e a água era quente e eu não achava ânimo para nada.
Longe, ainda mais longe de mim, o amor estava longe de mim.

Chove, ainda chove, os pijamas e as camas desarrumadas tentam disfarçar outros pensamentos, tento me esconder atrás de sussurros televisivos para não encarar a realidade que eu descobri há um ano atrás. Não consigo aceitar, não consigo me livrar, não consigo aprender a conviver com isso. Preciso aprender a viver sem o amor, não é fácil, a vida não é fácil, mas eu ainda tenho esperança, mas preciso me erguer, perdi um ano entre garrafas e cigarros, invadindo a Europa, desarrumando camas, trocando Beatles por Wagner. Um ano, é Agosto, chove, eu vejo isso através do vidro, os pingos tocam suavemente o asfalto cinza e molhado, a luz baixa ilumina os livros empoeirados pelo chão, pego o Magical Mystery Bus, os Beatles voltam a tocar, eu me reanimo. De vagar começo a mexer nos livros do chão, tiro a poeira da capa dura e escura, não consigo ver direito o nome do livro, o tempo apagou até isso. Me reanimo, volto a ler, escutar os discos, vejo que foi um ano perdido, mas não um ano inútil. A culpa de eu estar assim é minha, não do amor.Hoje eu descobri que longe, longe do amor, acho que eu passo longe do amor.


Ana Ferraz

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Caio!

Estou sem criatividade hoje, por isso estou postando esse conto de um dos meus escritores preferidos, Caio Fernando Abreu. Sob o céu de Saigon, esse conto está no livro Ovelhas Negras.



Sob o céu de Saigon


Para Regina Valladares

Ele era um desses rapazes que, aos sábados, com a barba por fazer, sobem ou descem a rua Augusta. Aos sábados quase sempre à tarde, pois pelos óculos muito escuros e o rosto um tanto amassado por baixo da barba crescida, quem olhasse para um deles mais detidamente, mas poucos o fazem, perceberia que dormiu mal ou demais, bebeu na noite anterior, acabou de chorar ou qualquer coisa assim. Costumam usar jeans desbotados, esses rapazes, tênis gastos, camisetas e, quando mais frio, alguma jaqueta ou suéter geralmente puídos nos cotovelos. Quase sempre levam as mãos nos bolsos, o que torna impossível a qualquer um que passe ver melhor suas unhas roídas, seus dedos indicador e médio da mão direita, ou da esquerda, se forem canhotos, amarelados pelo excesso de fumo. Eles olham para baixo, não como se tivessem medo de tropeçar nos solavancos freqüentes das calçadas da Augusta, pois raramente usam sapatos, e as solas de borracha dos tênis amoldam-se com certa suavidade às irregularidades do cimento; olham para baixo, e isso seria visível se se pudesse localizar o brilho nos seus olhos de pupilas um tanto dilatadas por trás das lentes escuríssimas dos óculos, como se procurassem tesouros perdidos, bilhetes secretos, alguma jóia ou objeto que, mais que valor, guardasse também uma história imaginária ou real, que importa? Mas às vezes olham também para cima, e quando o céu está claro, o que é raro na cidade, pode-se imaginar que suas peles brancas procuram desesperadas e quase automaticamente pela luz do sol. E quando o céu está escuro, o que é bem mais comum, sobretudo nesses sábados em que rapazes assim costumam subir ou descer a rua Augusta, pode-se imaginar que procurem balões juninos, objetos voadores não-identificados, pára-quedistas, helicópteros camuflados, zepelins, ou qualquer outra dessas coisas pouco prováveis de serem encontradas sobrevoando ruas como a Augusta num sábado à tarde. Ou horizontes, talvez busquem horizontes entre o emaranhado de edifícios refletidos nas lentes negras dos óculos que escondem o brilho ou a intenção do fundo dos olhos no momento em que um desses rapazes pára na esquina, como se tanto fizesse dobrar à esquerda ou à direita, seguir em frente ou voltar atrás. Por serem como são, seguem sempre em frente, subindo ou descendo a rua Augusta. E por serem tão iguais, quem prestar atenção em algum deles, mas poucas vezes ou nunca alguém o faz, jamais saberá se se trata de muitos ou apenas um. Um único rapaz: este, com a barba por fazer e mãos enfiadas no fundo dos bolsos, que agora, logo depois de cruzar o topo da Avenida Paulista, começa a descer a rua Augusta em direção aos Jardins no sábado à tarde.
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Ela era uma dessas moças, aos sábados, com uma bolsa pendurada no ombro, sobem ou descem a rua Augusta. Aos sábados quase sempre à tarde, pois pelos óculos muito escuros e o rosto um tanto amassado que a ausência total de maquiagem nem pensou em disfarçar, quem olhar para uma delas mais detidamente, e alguns até o fazem, pedindo telefone ou dizendo gracinhas sem graça, às vezes grossas, porque elas caminham devagar, olhando as coisas, não as pessoas, mas quem olhar com atenção perceberá que dormiu mal ou demais, bebeu na noite anterior, acabou de chorar ou qualquer coisa assim, sem muita importância. Costumam, elas também, usar jeans desbotados, sapatos de salto baixo, às vezes tênis gastos, camisetas ou alguma blusa de musselina, seda crepe, ou outro tecido assim fino, que um rápido olhar mais arguto perceberia de imediato não se tratar de uma pessoa prostituta ou empregada doméstica. Pois têm certa nobreza, essas moças, não se sabe se pela maneira altiva como fingem não ouvir as gracinhas que alguns dizem, se pelo jeito firme de segurar a alça da bolsa com seus dedos de unhas sem pintura, conscientes de que são fêmeas e estão na selva. Num súbito encontrão, que não seria impossível, menos aos sábados, é verdade, do que nas sextas-feiras ao meio-dia ou de tardezinha, se alguém arrebatasse a bolsa a uma dessas moças para depois rasgá-la num terreno baldio, ficaria decepcionado com o dinheiro escasso, o talão de cheques sem saldo, uma agenda de poucos compromissos, tickets de metrô, algum livro de poesia, esoterismo ou psicologia, uma foto de criança, raramente de homem, quem sabe um cartão de crédito vencido e entradas para teatro ou show, já usadas. Essas moças não olham para baixo nem para cima: com passo decidido, olham direto para a frente, como se visualizassem além do horizonte um ponto escondido para esses outros que passam quase sempre sem vê-las, para onde se dirigem com seus jeans gastos, suas bolsas velhas, suas peles de nenhum artifício. Dessa nitidez no passo, dessa atrevida falta de artifícios no rosto é que brota quem sabe aquela impressão de nobreza transmitida tão fortemente quando passam, mesmo aos que não as olham nem mexem com elas. Podem parar para folhear revistas estrangeiras em alguma banca, sem jamais comprar nada, deter-se para conferir os preços estampados nas portas dos restaurantes, olhar maçãs ou morangos, tocar rosas ou antúrios, mas geralmente apenas seguem em frente, subindo ou descendo a rua Augusta. Talvez sejam tantas e, se realmente o são, tão parecidas que, se alguém do alto de uma janela no Conjunto Nacional olhasse para baixo e as visse agora, poderia pensar mesmo que são uma só. Uma única moça: esta, com a bolsa velha pendurada no ombro, que depois de cruzar o topo da Avenida Paulista começa a descer a rua Augusta em direção aos Jardins no sábado à tarde.
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E porque o mundo, apesar de redondo, tem muitas esquinas, encontram-se esses dois, esses vários, em frente ao mesmo cinema e olham o mesmo cartaz. Love kills, love kills, ele repete baixinho, sem perceber a moça a seu lado. And this is my way, ela cantarola em pensamento, na versão de Frank Sinatra, não de Sid Vicious, sem perceber o rapaz a seu lado. Outros entram e saem, sem vê-los nem ver-se, remanescentes punks, pregos nas jaquetas, botas pretas, intelectuais de óculos, aros coloridos, paletó xadrez, adolescentes japonesas, casais apertadinhos, elas comendo pipocas, senhoras de saia justa, gente assim, de todo tipo.E talvez porque rapazes e moças como ele e ela aos sábados à tarde raramente ou nunca se enfiam pelos cinemas, preferindo subir ou descer a rua Augusta olhando as coisas, não as pessoas, os dois se encaminham para as entradas em arco do cinema. Então param e olham para cima, suspirando em suave desespero, um céu tão cinza, como se fosse chover, oh céu tão triste de Sampa.E então como se um anjo de asas de ouro filigranado rompesse de repente as nuvens chumbo e com seu saxofone de jade cravejado de ametistas anunciasse aos homens daquela rua e daquele sábado à tarde naquela cidade a irreversibilidade e a fatalidade da redondeza das esquinas do mundo - ele olhou para ela e ela olhou para ele.Ele sorriu para ela, sem ter o que dizer. Ela também sorriu para ele. Mas disse, a moça disse:

- Parece Saigon, não?
- O quê? - ele perguntou sem entender.Ela apontou para cima:
- O céu. O céu parece Saigon.
Surpreso, e meio bobo, ele perguntou:- E você já esteve em Saigon?
- Nunca - ela sorriu outra vez.
- Mas não é preciso. Deve ser bem assim, você não acha?
- O quê? - ele, que era meio lento, tornou a perguntar.
- O céu - ela suspirou. - Parece o céu de Saigon.
Ele sorriu também outra vez. E concordou:- Sim, é verdade. Parece o céu de Saigon.

Nesse momento - dizem que cabe aos homens esse gesto, e eles eram mesmo meio antigos - talvez ele tenha pensado em oferecer um cigarro a ela, em perguntar se já tinha visto aquele filme, se queria tomar um café no Ritz, até mesmo como ela se chamava ou alguma outra dessas coisas meio bestas, meio inocentes ou terrivelmente urgentes que se costuma dizer quando um desses rapazes e uma dessas moças ou qualquer outro tipo de pessoa, e são tantos quantas pessoas existem no mundo, encontram-se de repente e por alguma razão, sexual ou não, pouco importa se por alguns minutos ou para sempre, tanto faz, por alguma razão essas pessoas não querem se separar. Mas como ele era mesmo sempre um tanto lento, não perguntou coisa alguma, não fez convite nenhum. Nem ela. Que lenta não era, mas apenas distraída. Ela então sorriu pela terceira vez, e já de costas abanou de leve a mão abrindo os dedos, como Sally Bowles em Cabaret, e continuou a descer a rua Augusta. Ele também sorriu pela terceira vez meio sem jeito como era seu jeito, enfiou as mãos ainda mais fundo nos bolsos, como Tony Perkins em vários filmes, coçou a barba por fazer e resolveu subir novamente a rua Augusta.

Uns cem metros além, ela pela alameda Tietê, ele pela Santos, esse rapaz e essa moça, ou talvez os dois, ou quem sabe mesmo nenhum, mas de qualquer forma ao mesmo tempo, pensam vagos e sem rancor mas estes sábados sempre tão chatos, porra, nunca acontece nada. Por associação de idéias nem tão estranha assim, ele ou ela, ou nenhum dos dois, talvez olhem ou não para trás procurando quem sabe algum vestígio, um resto qualquer um do outro pela rua Augusta deserta do sábado à tarde.

Mas rapazes e moças assim não costumam deixar rastros, e ambos já tinham sumido em suas esquinas de ladeiras súbitas e calçadas maltratadas. Acima deles, nuvens cada vez mais densas escondem súbitas o anjo. O céu de chumbo, onde não seria surpresa se no próximo segundo explodisse um cogumelo atômico, caísse uma chuva radioativa ou desabasse uma rajada de napalm, parecia mesmo o céu de Saigon, quem sabe pensaram. Embora, de certa forma, eles nunca tivessem estado lá.

Caio Fernando Abreu

domingo, 11 de maio de 2008

Pode ser eu!?

Manhãs como essa, são as que me fazem feliz. Acordar, andar até a janela e ficar olhando para fora, sem conseguir enxergar muita coisa por causa da neblina, a fumaça do café quente e sem açúcar me lembram que nem tudo é doce e nem todo amargo é ruim. Não sei bem quando começou esse vicio de acordar cedo nos dias frios, os melhores para ficar na cama dormindo até tarde, encher uma caneca de café forte sem açúcar e caminhar até a janela, olhar para fora, sem rumo, sem enxergar muita coisa, a noite se despedindo e o dia timidamente aparecendo. Já faço isso há alguns meses, o frio insiste em aparecer poraqui na maior parte do ano, o que me deixa feliz, pois posso fazer esse ritual todos os dias. O gosto do café amargo me anima como sempre depois do terceiro gole vou até a vitrola da sala e escolho um disco, acho que só o disco que não se repete com muita freqüência..
Hoje o dia amanheceu nublado, o céu cinza, o café quente, o disco rodando, tudo como sempre. Mas não me sinto muito feliz, a sensação de satisfação matinal não é o que estou sentindo agora, queria ter ficado na cama, dormir até tarde, acordar na hora de sair para o trabalho, tomar um banho, procurar um táxi e não achar nenhum, ficar esperando o metrô e chegar atrasado no escritório, como pessoas normais fazem.
O problema é que não trabalho em um escritório, tenho meu carro, mas prefiro andar de bicicleta e o pior de tudo, não tenho um chefe, muito menos um emprego. Eu vivo em uma cidade agitada, ando pelas ruas fotografando lugares, pessoas, paisagens. Quando preciso de dinheiro vendo algumas fotos, mas não gosto muito disso. Vejo muita gente, mas não me relaciono bem com as pessoas, dizem porai que sou anti-social ou coisa assim, mas as pessoas também não se relacionam muito bem comigo. Tenho uma relação estranha com o mundo externo, por isso prefiro ficar aqui dentro, entre discos, fotografias, xícaras de café, livros e muitas folhas de papel jogadas pelos cantos. Gosto de escrever, mas nunca mostro pra ninguém, tem uma moça que vem aqui toda a semana fazer a faxina, eu falo bastante com ela, porque ela fala comigo.
O dia nasceu diferente, eu sei que alguma coisa aconteceu, sinto que hoje vou ter que falar com muita gente, isso está começando a me amedrontar, não sei o que fazer quando as pessoas falam comigo, todos me acham estranho demais. Daqui duas horas vou sair com a minha máquina para fotografar, hoje vou caminhando, estou cansado para pedalar, não tive uma noite muito boa, quase não preguei os olhos.
Bateram na porta agora, vieram me avisar que a moça que trabalha aqui morreu. Eu sabia que tinha um clima diferente no ar. Odeio velórios, vou ter que usar terno preto, o cemitério é muito longe não vou poder ir de bicicleta, meu carro está tapado de poeira e eu estou triste.
Acabei de voltar do velório, coitada da moça foi brutalmente assassinada, uma morte horrível. Tive que trocar algumas palavras com alguns vizinhos que também pagavam a moça para limpar suas casas, a maioria apenas me conhecia de vista, acho que só troquei comprimentos com alguns deles no elevador.
Mais uma xícara de café, ainda mais amargo. Vi muitos policiais no cemitério, um deles seguiu meu carro até aqui. Estou escutando um disco, sentado na janela apreciando a bela vista da cidade, sinto que a qualquer momento alguém vai bater na porta. Continuo triste, a única pessoa que falava comigo morreu e acho que o suspeito sou eu.
Ana Ferraz

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Cinema Mudo

"Amor sem palavras, cinema mudo."


Cinema mudo

Ela chegou na festa, calça branca de um tecido leve , uma blusa azul e casaco jeans , que davam um ar de descontração. Procurou o lugar menos iluminado do salão, puxou uma cadeira, debruçou-se na mesa e alguém lhe deu um copo cheio de cerveja. Bebeu o primeiro gole, a bebida parecia entrar em seu intimo que resfriava seu corpo provocando arrepios, mas ela gostava da sensação. Naquela noite tudo o que ela queria eram novas sensações, estava à procura de alguma coisa, mas não sabia bem o que procurava.
Sempre foi muito comunicativa, gostava de estar com os amigos batendo papo, só que ultimamente ela não andava nem um pouco entusiasmada para isso. As pessoas chegavam perto da mesa e puxavam assuntos supérfluos como, a vida alheia, faculdade, festas, mas ela apenas respondia por educação com um sim ou não, e às vezes um pois é. Talvez fosse tristeza, ansiedade por alguma coisa que não sabia o que ou apenas vontade de submergir, ali mesmo naquela cadeira e esquecer todos os assuntos desinteressantes que estavam sendo sussurrados aos seus ouvidos. Na verdade estava cansada com o modo em que levava sua vida, desatenta com a vida de seus amigos queridos e desleixada consigo mesma. Ela queria sentir-se completa, mas alguma coisa impedia que isso acontecesse. Tentava se convencer que era apenas uma neurose boba que passaria assim que bebesse mais umas cervejas e se integrasse ao pessoal, que dançava no meio do salão, um rock antigo que não permitia que alguém ficasse parado.

Continuou a beber, quando menos esperava foi tirada para dançar.

Ele era um rapaz alto, moreno, vestia calças jeans rasgadas e uma camiseta verde, não usava nem óculos ou chapéu. Não conhecia muitas pessoas na festa, nem sabia como havia parado lá. Era mais um desses garotos quietos que aparecem nas festas para não se sentirem deslocados do mundo em que vive, na verdade preferia ficar em casa jogando vídeo-game ou lendo um livro interessante. Uma pessoa tímida, de poucos amigos, pouco comunicativa que bebia de vez enquando, não gostava de fumar e escutava música clássica. Nunca se dava bem com as garotas, talvez por ser magrelo, barba por fazer e cabelo banguçado. Sabia que o seu maior inimigo em relação às mulheres sempre foi seu jeito tímido, mas não sabia como ser diferente.
Acabou entrando na festa com a intenção de modificar seu roteiro, ao contrário do que esperava estava com um cigarro aceso na mão, mas não havia bebido nada. A vistou de longe uma garota de cabelos longos que usava uma calça branca e parecia meio deslocada do resto da festa. Não sabe como ou porque, mas viu nela alguma coisa que iria ajudá-lo. Levantou-se e foi dirigindo-se a parte mais escura da festa, foi afastando as cadeiras e mesas que estavam em seu caminho. Chegou perto da última mesa do salão, sentou-se ao lado da garota das calças brancas, ela parecia distraída, não havia notado a presença dele ainda. Pegou na mão da moça e a chamou para dançar, sem pensar muito no que estava fazendo ela foi se levantando e os dois começaram a dançar ali mesmo, na parte escura da festa, onde poucas pessoas poderiam vê-los.
Ele parecia confuso com o que acabara de fazer, nunca imaginou tirar uma menina para dançar, nunca dançava muito, ficava timidamente ensaiando uns batuques na perna das músicas que ouvia.
Ela estava assustada, nem havia notado a presença do garoto quando notou que já estava dançando com ele, a música alta e agitada não a deixava pensar direito, foi deixando-se levar pela melodia e pelos braços do rapaz misterioso.

A música acabou ela não sabia o que fazer, ele a abraçou. Ele sabia que alguma coisa estava errada, não sabia da onde havia surgido tanta coragem. Ela não estava entendo porque ainda não havia falado uma palavra com ele. Os sentimentos de ambos misturavam-se, eles sentiam-se em harmonia, os corpos juntos, os braços entrelaçados, não foi preciso muitas palavras ou explicações. Soltaram-se, ele gaguejou alguma coisa, um som que não foi possível traduzir, ela puxou seu copo de cima da mesa e tomou um grande gole de cerveja quente.
Da mesma maneira com que eles acabaram dançando os dois foram se distanciando, viraram-se de costas um para o outro, cada um seguiu seu caminho.
Ele até a porta de saída, ela foi até a janela. Ele carregava a certeza que aquela seria a mulher mais importante de sua vida, ela sabia que algumas respostas para suas angustias haviam sido encontradas naquele rapaz.
Nunca mais viram um ao outro.

Ana Ferraz